domingo, 23 de novembro de 2025

O carro de boi - Professor Ramalho

Sei não... quando se ia devagarinho, no passo dos bois, a gente tinha mais tempo pra pensar nas coisas da vida...

O carro: Tem carro de boi, e tem carreta. Carreta, ou carroção, tem roda raiada e é muda, não canta. Carro de boi tem roda inteira, e canta para se ouvir de léguas, seja gaita, pombo ou baixão. É coisa de sertanejo, é uma saudade doída de um tempo onde se ia devagar, mas havia mais tempo para ver e entender as coisas. Saber de carro de boi, é mexer com magia, é entender a alma da madeira e do ferro, da terra e do fogo, da água e do ar...
O carro de boi foi nosso principal meio de transporte no período colonial, no império e até na era republicana. Mas, vamos só falar da coisa em si, do que o Professor Ramalho reuniu ao longo dos anos, trocando prosa com carapinas, candieiros, carreiros, fazendeiros lá das bandas de Taquaritinga, Jaboticabal, Guariba, Monte Alto, Santa Adélia, e arredores. Juntou a ciência da feitura, "causos", muita coisa boa de se conhecer.

A construção: 
Visto de frente, de lado, de cima e de baixo, o bicho é veículo simples, de duas rodas. Todo feito de madeira, menos os aros das rodas, a chaveta e o argolão, que são de ferro, leva as cargas na mesa, que remonta no par de rodas e tem um varejão reforçado onde se atam os bois, chamado cabeçalho.
A mesa é feita de duas chedas que saem uma de cada lado, ligadas no cabeçalho e que apoiam o assoalho. As chedas e as arreias que as unem são feitas de cabreúva, madeira que nem se sabe se existe mais. O assoalho é de canelão, ou outra madeira nem muito dura, nem muito mole. Na parte de trás, fica o rebaixo (recavém). 
As rodas são de cabreúva, a parte do centro é chamada meião e lateralmente se limita com as duas cambotas. O meião, perto das cambotas, tem sempre dois buracos, o bocão, ou oca, que é para o som criar força e ecoar. O aro da roda é de ferro, e para ser calçado, é forjado na bigorna, a malho, redondo perfeito, podendo ser fechado fraguado ou com rebite - esse não resiste muito, não. Para abraçar a roda, é esquentado quase ao vermelho numa fogueira de roda, para expandir. O ferreiro e os ajudantes o ajeitam em cima da roda, no chão, acertam rápido com golpes de malho para não ficar torcido e, estando centrado, o esfriam com água. O ferro se contrai de a madeira estalar... Nunca ninguém mais tira. Os cravos de meio palmo eram só pelas dúvidas.
O eixo também é da desaparecida cabreúva, oitavado e com morgueiras do lado de dentro e de fora, para o chumaço não escapulir do cocão e apoiar a roda, que é segura por uma ou duas chavetas. São dois de cada lado, e é por donde gira o eixo. O chumaço deve, de preferência, ser feito de canelão, pra o carro realmente cantar. Madeira dura canta fino, de gaita, canelão canta de pombo ou canta baixo. Capixingui, baraúna e caviúna fazem carro cantar até sem carga, mas pedem óleo de copaíba. Canelão canta com óleo de mamona. Esse fica num chifre chamado azeiteira, amarrado com correia num fueiro, e uma vara com trapo na ponta é usada para por óleo no chumaço. Tem vez que o eixo, no atrito com o chumaço, chega a fumacear e levantar labareda. Aí o carreiro pega os cachos de mamona verde e limpa a cantadeira, que é a área do chumaço ajustada no eixo.
Na traseira do carro, há o argolão de ferro, que serve para engatar os bois para puxar o carro para trás, quando encalha, e para encangar os bois de retranca, quando a descida é muito forte. Nela se amarra a tiradeira, ou cambão, quando se tem que "depenar uma coruja", que é como o povo chama tirar o carro do atoleiro. O cambão é um varejão forte e reto feito de cabreúva, assapuva, guatambu ou peroba. Tem na parte da frente uma chaveta e, na de trás, o rabo, de couro cru, que se engata na chaveta da junta de bois anterior. Quanto mais bois na canga, mais cambões são usados. Também se usa rabo de corrente e gancho de ferro, mas o certo é o couro cru.
A mesa, sem os fueiros, de pouco serve. Fueiro é haste reta e forte, de carrapateiro, guaritá, assapuva ou peroba, que se encaixa nos furos dos lados do assoalho, em geral cinco de cada lado, dois na frente e dois no cadião. Seguram a carga e escoram a esteira, um trançado de taquara de mais ou menos um metro de altura, que fica em pé e tem abertura no fundo do carro. Fecha com atilhos de couro. Para proteger a carga, usa-se couro curtido inteiro de boi . Quatro deles cobrem um carro.
Das tralhas miúdas, temos o ajoujo, que serve para amarrar os chifres de um boi ao outro, formando a junta. Também serve para aquietar menino danado... É feito de couro cru, tem mais ou menos duas braças de comprido. Os tamoeiros também são de couro cru torcido e volteiam as cangas, servindo para travar a frente dos cambões ou tiradeiras pelas chavetas. Temos também a brocha, que serve para amarrar os canzis por baixo do pescoço, para segurar o boi e evitar que a canga solte do cangote. Mede mais ou menos um palmo e é feita de couro cru torcido.
Há a escora, de madeira, que vai um palmo acima da canga e dois palmos e meio abaixo, servindo para apoiar o carro, quando parado, aliviando o peso nos bois de coice, ou para manter o cabeçalho na horizontal, quando desatrelado. Cabeçalho no chão dá azar.
Finalmente, existe a vara de ferrão, de carrapateiro e até de peroba, na frente leva ponteiro de ferro que, antes da ponta, tem furo com duas ou três argolas de ferro, que chacoalham e, assim, o boi já sabe que lá vem cutucão e desamua, ou arranca mais. Carreiro bom não espeta boi de tirar sangue. Só ponteia, depois o bicho se mexe só pelo barulho das argolas. Quando tem muitas juntas, costuma-se amarrar na ponta do ferrão uma tira comprida de couro, para alcançar e deixar os bois lá da frente mais espertos.

O Canto do Carro de Boi - 
Quem ouviu, ouviu. Quem não ouviu, não ouve mais. Parece que onde chegam as técnicas e tecnologias de fazer tudo mais depressa, como se o mundo fosse acabar ontem, a poesia acaba desmantelada. Porque o carro de boi não canta por boniteza, somente. Canta por precisão. A vida do carro está na cantiga. Carro de boi, de pau, que não canta, não é carro. É tranqueira com rodas, coisa morta, desservida de encantamento. Porque se há muita carga e o carro canta de gaita, a gente mata os bois. Eles ficam destrambelhados, se estouram no esforço. Mas se o carro canta de baixão, vão lá naquele passo deles, na mesmice de boi deles, em paz com Deus e com o mundo. E se é trabalho corriqueiro, normal, então é bom o carro cantar de pombo, nem para cima, nem para baixo. Pois, estes são os três tons de cantar dos carros: pombo, que é médio, macio. Gaita, fino e alto. E baixão, que é grosso e grave.
Carro cantador não vareia, não descontinua nem destoa nem mesmo nas bacadas mais brutas, ou manobras de vai-e-vem. Léguas longe, quem sabe e conhece percebe a alma do carro chegando muito antes que se possa pôr os olhos nele. Porque o canto do carro é isso: é sua alma, é a alma do carreiro, é o jeito que Deus deu para enfeitar a existência dos bois e dos carreiros pelos caminhos do sertão e da vida.

O Boi - 
No geral, os carros atrelam oito bois, mas podem ser dois, quatro, se há muito peso, dez, doze, até uns dezesseis. Mais, é desperdício, pouco carro prá muito boi.
Boi de cabeçalho, ou de coice, é boi de força, de servidão garantida, arrasto firme. É boi de confiança, os primeiros depois do carro. Já os do pé da guia podem ser menores, mas sabidos, e os da chave e contra-chave podem ser meio bravos, pois atrelados no meio, entre os outros, não causam problemas. Idade boa para amansar boi é pelos três anos e meio. Alguns trabalham até 25 anos, mesmo 30. Para quem não sabe, que fique sabendo: boi é capão, não serve para tirar cria. Touro é outra história. Chamar um de boi, pode trazer confusão. Mas houve esperto que acabou pondo vaca a puxar carro... Um trem desse ninguém leva a sério.
Quando os bois não têm muito trabalho, carreiro bom atrela do mesmo jeito no carro: "Nóis ponhamo bastante boi, que é preles num ficá vadiano" Se boi fica gordo, não tem serventia, não resiste mais o esforço.
Nome de boi é sentimento. É presente para o bicho no dia que nasce. A gente olha, lá dentro acontece a inspiração e vem o nome: Fumaça, Melindroso, Coração, Dourado, Maneiro, Faceiro, Formoso, Espadilha, Sete de Ouro. Estrela, Malhado, Turuna, Namorado, Pitanga, Corumbá, Maravilha, Limoeiro. Montanha, Brioso, Barroso, Moreno, Mulato, Ponteiro, Caruaru, Cravinho, Cruzeiro. Teve até um que tinha olho puxado, virou Sakamoto, lá no Sitio Bom Destino, em Santa Rosa do Viterbo. Nome de boi é isso, é poesia, tá ali na qualidade, na cor, no jeitão, na prosopopéia do bicho.

Simpatias e Sabedorias - 
Sempre há as crendices, as coisas de fé, de imaginação, e tentativas de explicar algo que não tem resposta. São o domínio do Saci, do Coisa-ruim, assim por diante:
- "Ponhá o cabeçalho do carro no chão não presta. Atrasa o dono. Tem de ficar escorado pras coisas estarem no lugar".
- Desencalhe do carro é chamado de "depenar coruja". Vai ver, porque é ave ruim de despenar. O professor Ramalho conta que um carreiro lhe disse:
"- Compadre, depenei um corujão na subida do riacho do Tijuco"...
- Pra pegar boi brabo, arisco, a gente pega uma espiga de milho, passa debaixo d'um braço esquerdo, adepois do outro, e dá pr'o boi comer. Fica tão manso que até vem de encontro. Ou se a gente mistura açúcar no sal três vezes, o boi se acostuma, vê o carreiro e já vem até encontrar".
- "Pra carro de desafeto parar de cantar, a gente espera passar na beira d'um rio, cospe na terra da margem, pega ela e passa ela na cantadeira... claro, sem o dono ver.
- Pra deixar carreiro sorococando de raiva, na hora do pouso, sem o decente saber, a gente troca os chumaços do carro dele, botando um de caudéia, outro de cedro. Daí que o carro fica com duas vozes, desafinado, e o dono chifra o chão por causa do desentôo. Pr'a quem não sabe, caudéia e cedro são madeiras".
Pra desencalhar um carro do jeito mais antigo: a gente vira a parte da chavelha para trás da tiradeira da frente, enquanto vai dizendo "- Turumbamba na Gambemba" que uns diz que quer dizer "- Carne seca do Diabo", na língua dos pretos da Costa. Diz-que funciona!".
- Pra descangar boi jogador de canga, desses que na hora que a gente desabrocha ele, o danado arremessa a armação pr'a trás, que é coisa perigosa, o jeito é desabrochar o canzil do lado de fora, quando estiver perto do lugar de descangar. O boi é enganado, quando vir, já tirou-se a canga e ele nada fará".

Remédios para os Bois - José Mendes de Barros, da fazenda Diamantina, de Taquaritinga, foi carreiro mais de cinquenta anos, e ensinou as seguintes receitas:
  • Febre de Gado: carqueja e perobinha. Esta serve igual para curso branco.
  • Carrapatos: sal e cinza na pele do boi é santo remédio.
  • Dor de barriga: leite e azeite doce. Também é bom butica-inteira ou então joão de castro, perobinha ou abóbra de anta, um cipozinho que dá uma batata que cura cólica. Três pimentas do reino, dadas ao boi, também curam.
  • Micuim (inseto que péla o animal, deixando a pele toda ferida): lavar com sabão e creolina, ou limão com sal antes de virar ferida.
  • Limpar o sangue: sal amargo com farelo.
  • Ferimentos: banhar a parte machucada do boi com infusão de sorda, (planta rasteira, que se parece com a batata doce). Melão de São Caetano com azeite de mamona também é remédio certo. Salmoura também é bom.
  • Rins: carrapichinho rasteiro, como chá ou banhos.
  • Fetosa : chá de abrobera.
  • Figueira, grosseira ou caroços, tubérculos: rebatiza-se o boi com o nome de Figuera, corta-se a figueira e se queima, e o boi sara.
Quando boi está empachado, pega-se um punhado de terra na frente de um portão, põe-se num pano bem limpo, amarra direitinho. Daí, ferve o atado fazendo um chá que para o boi, e acaba com o empachamento. Se está doente do rim, a gente dá chá de chapéu de couro, erva-tostão ou jurubeba. Se o mal é do figado, dá chá de capeva e jurubeba. Rebentão é bom pra urina presa. Mistura de sal e cinzas é purga certa contra empachamento.

Cancioneiro - Difícil de encontrar versos, trovas, modinhas inéditas dos carreiros. Já com o advento do rádio, duplas caipiras e cantores levaram essa riqueza ao público. Mas há estrofe perdida, um restinho de verso aqui, outro ali, gostinho do que nunca foi escrito, só dito ou cantado.

Meu reino encantado (part. José Camillo) - Daniel

Eu nasci num recanto feliz
Bem distante da povoação
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai, mamãe e os irmãos

Nossa casa era uma casa grande
Na encosta de um espigão
Um cercado pra apartar bezerro
E ao lado um grande mangueirão

No quintal tinha um forno de lenha
E um pomar onde as aves cantavam
Um coberto pra guardar o pilão
E as tralhas que papai usava

De manhã eu ia no paiol
Um espiga de milho eu pegava
Debulhava e jogava no chão
Num instante as galinhas juntavam

Nosso carro de boi conservado
Quatro juntas de bois de primeira
Quatro cangas, dezesseis canzis
Encostados no pé da figueira

Todo sábado eu ia na vila
Fazer compra para semana inteira
O papai ia gritando com os bois
Eu na frente ia abrindo as porteiras

Nosso sítio que era pequeno
Pelas grandes fazendas cercado
Precisamos vender a propriedade
Para um grande criador de gado

E partimos pra cidade grande
A saudade partiu ao meu lado
A lavoura virou colonião
E acabou-se meu reino encantado

Hoje ali só existem três coisas
Que o tempo ainda não deu fim
A tapera velha desabada
E a figueira acenando pra mim

E por último marcou saudade
De um tempo bom que já se foi
Esquecido em baixo da figueira
Nosso velho carro de boi

Os Causos - Os "causos": essas estórias que a gente ouve e nunca cansa de escutar. Como eram contados à noite, depois da matulagem, falam sempre de assombração, coisa de não se sabe onde, bicho que não é bicho, coisas de espantar o ouvinte. Ainda mais se é novato, não é de lá, pois muita coisa só acontece no sertão. Quem quiser que se compadeça, pois alma penada é o que não falta. A linguagem foi conservada conforme o contador do "causo", pois se quem conta um conto aumenta um ponto, não tem direito de reinventar.

A ONÇA DA FAZENDA FIGUEIRA - Narrado por Evaristo Ramalho, antigo carreiro e fazendeiro.
Na Estrada de Ferro Araraquarense, íamos uma vez da Fazenda São Domingos para a estação com cinco carros de boi carregados de café. Arranchamos perto da Fazenda Figueira. Não tinha muita mata, mas era um pé de serra, de baixada, plano e bem achegado. Fizemos a comida com os caldeirões pendurados nos argolões dos carros pois ameaçava chuva. E veio. Veio de afogar o mundo. Assim que foi embora, o pessoal reuniu-se para a comida.
Na hora do licor de jabuticaba, pertinho-pertinho ouvimos o esturro forte de uma onça... Largamos tudo, até a garrafa de licor e as canecas, subimos de avoada num dos carros, o Abel, o Amâncio, enfim, todo o povo. Outro esturro, e os bois rebentaram as peias e desandaram no mundo, tropelão desarvorado.
Bem na nossa frente, apareceu a pintada, de patonas tortas, calma e dona do seu passo. Veio vindo, comeu das comidas e, espanto: bebeu, com lambidas de quem entende do assunto, o licor de jaboticaba das canecas e o que caía da garrafa. A gente já estava pensando em jogar o preto Amâncio pr'ela, pois o povo diz que onça gosta de carne de africano e vem pelo faro. Mas o Amâncio puxou um garruchão 44, rosnando que se cristão chegasse cristão que matasse, e a gente mudou de idéia. Dissemos que atirasse nela, mas ele disse que a garrucha era só de matar gente. Foi que a onça, depois de comer e beber o de fartar, se ajeitou na trilha e lá se foi num passo meio tropeçado, andando meio de lado, miando meio enrolado... Coisa assim, só pode ser reinação do Perneta!

O CARRO ASSOMBRADO - Compilação de Horácio Ramalho.
A Fazenda São Domingos empregara, lá pelos idos de 1915, um trabalhador que já estivera nas guerras da Itália e ficara alterado das faculdades mentais.
Era chamado de Rafaelão por sua desmesurada altura. Arredio, falava sozinho, resmungando com voz gaga, entrecortada, grossa e cava. Ninguém queria graça com ele, receavam-no, apesar que quando tentavam o diálogo ou brincadeira, o homenzarrão mais se retraisse. Um dia, como sempre ninguém sabe por quê, Rafaelão pegou um revólver e ao ver passar o preto-velho de nome Maceió, gritou:
-Maceió! Se aprepara, peste! Vou te matar! E atirou mesmo, ferindo-o no braço. Maceió correu para a sede da fazenda procurando o patrão José Ramalho. Este mandou-o tratar e avisar a polícia. No mesmo dia, o sargento do destacamento veio em pessoa para prender o Rafaelão que desaparecera na invernada. Bulha que te bulha, o sargento o acurralou num resto de mata, lá em cima de um pé-de-pau. Deu-lhe voz de prisão. Veio um mundo de bala de volta. Tiro vai, tiro vem, Rafaelão acabou tombando, morto de fuzil Mauser, antes de bater no chão.

A Comida dos Carreiros - 
A matula que os carreiros levavam nas viagens tinha, quase sempre, virado de feijão, arroz, carne de porco, torresmo, jabá, quiabo, giló ou xuxu. Levavam num caldeirãozinho, no mais das vezes embrulhado num pano de algodão. Também faziam parte a rapadura, o café e o "mata-bicho", a cachaça.
Nos percursos longos, preparavam a comida na beira do caminho, de preferência perto de algum riacho. Para isso, levavam o tripé de madeira ou ferro, onde penduravam as vasilhas sobre o fogo para cozinhar os alimentos. Acontecia também cozinharem com o caldeirão preso num arame ao argolão debaixo da mesa do carro, principalmente quando chovia. Faziam também uma bebida que chamavam de "jucuba", que era o melaço ou a rapadura misturados com água. Era coisa antiga, usada nos últimos quartéis do século passado e começo do presente , que faz muito tempo que sumiu da zona rural.
Foi um deus-nos-acuda. José Ramalho mandou um carro de boi buscar o cadáver para levar à cidade. O carreiro foi, fez e voltou, chegando tarde da noite, meio assustado com a carga que transportara. Seu carro sempre fora un dos melhores cantadores da fazenda, de tom baixo, melodioso, contínuo, com o que os bois andavam cadenciados, no passo certo, sem desmandos ou estropelias Ouvia-se de léguas, sendo por todos admirado.
Pois bem: diziam os carreiros e passou-se de geração a geração, que depois dessa viagem funerária tudo mudara... E faziam o diabo para não ter de usar esse carro de boi. Sem motivo concreto, ele, que pelas estradas nunca deixara de encantar com o canto firme, continuado, grave e harmonioso, até em bacada bruta, passara a resmungar baixo, entrecortado, gago, um canto grosso resmungado, parecido com o monólogo desvairado do Rafaelão.

ARROZ DE CARRETEIRO
(Fornecida por Dona Terezinha Benavente)
Ingredientes:
250 g de arroz
350 g de carne seca
2 colheres de sopa de óleo, ou banha de torresmo, ou de toucinho defumado
1 cebola (melhor roxa) bem picada
2 dentes de alho socados
2 colheres de sopa de torresmo miúdo
pimenta vermelha, pimenta do reino e sal
uma folha de louro.
Modo de fazer:
Deixar a carne seca de molho em água fria umas 10 horas, ou "de véspera". Então retire a carne da água, escorra bem até ficar enxuta. Corte-a em pedacinhos, refogando-a a seguir em óleo bem quente (ou gordura de torresmo, ou do toucinho defumado). Junte com a cebola bem picada, o alho socado, a folha de louro, a pimenta vermelha e do reino a gosto. Adicione água aos poucos e deixe cozinhar até a carne ficar bem macia.
Escolha e lave o arroz. Quando a carne seca estiver cozida, acrescente o arroz já limpo e o torresmo miúdo, cubra tudo com água e deixe cozinhar em fogo moderado, até o arroz ficar no ponto. Prove para temperar o sal.
Se quiser, acrescente pimentão verde, tomate, pimenta malagueta. É prato para servir bem quente, e muito fácil de fazer. Imaginem que os carreiros o cozinhavam nas paradas, num caldeirão pendurado num tripé ou no argolão do carro de boi.

FEIJÃO TROPEIRO ESPECIAL
(Receita fornecida por Dona Avelina Tortorello)
Ingredientes:
2 pratos fundos de feijão bem cozido, sem amassar, temperado com salsa, cebolinha, cebola, pimentas, sal, azeitonas picadas, quatro tomates picadinhos sem semente. Refogar e deixar reservado.
À parte: fritar toucinho defumado, misturar 2 colheres de margarina e adicionar sal. Fazer uma farofa com 1/2 kg de farinha de mandioca torrada, bem solta.
À parte: cozinhar, na água, 3 lingüiças calabresas grandes. Cortar em rodelinhas. fazer um molhinho fraco de tomate, cebola, óleo, cheiro verde e misturar as rodelinhas de lingüiça.
Modo de preparar:
1 camada de farofa
1 camada de feijão temperado
1 camada de lingüiça calabresa com molho
Azeitonas e rodelas de ovos cozidos
Repetir até acabar. Terminar com azeitonas, lingüiça e rodelas de ovos. Servir
assim, não vai ao forno e nem ao fogo. Servir com arroz branco, lombo e salada de alface.

Desenho Técnico: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Figuras: "Paisagens brasileiras" - Pintor Paulo Daleffi.
Base da publicação: “O Carro de Boi” - Monografia do prof. Horácio Ramalho.