sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Eu não sou eu nem sou o outro

Tinha uns seis anos morava em Congonhal, um lugarejo lá em Minas Gerais. Parecia mais um indio do que um moleque. Andava descalço, usava só um calção largo, jogava pedras nos carros que passavam pela rodovia e gostava de tomar banho em rio pelado que corria nas redondezas da cidade.
Um dia, ao voltar para casa, notei certo alvoroço. A avó Maria contou que havia se instalado na cidade um bando de ciganos. Eu nunca havia visto ciganos, só em livros de histórias e em relatos da Rádio Clube de Pouso Alegre.
- Vocês devem tomar cuidado com os ciganos. Ciganas roubam crianças, escondem-nas debaixo da saia, fogem. Nunca mais ninguém as encontra! – falou a avó.
Meu Deus! Que coisa horrivel! Como é que podiam fazer isto? Roubar criança pequena! Com cautela, fui até o portão. Será que havia alguma criança ná rua enquanto os ciganos estavam na cidade? Foi quando avistei Rogério meu amigo de escola.
- Rogério, sabia que tem ciganos na cidade?
- Sei. Até já fiz amizade com eles quando passaram na frente de casa. Conheci uma ciganinha linda, ela se chama Elaine, usa vestido bem comprido, rodado e colorido. Também usa muitas pulseiras, colares e brincos. Seu pai tem dente de ouro, sabia...
Apesar do medo, meu rosto se iluminou como quem está prestes a ver uma assombração.
- Minha avó Maria disse que eles roubam crianças.
- Minha avó Mércia também. Disse pra tomar cuidado. Quando ver uma cigana, devo fugir.
- Rogério, a gente podia ir ali pertinho, eles estão no bairro do Cruzeiro, só espiar.
Não falamos mais nada. Com o coração aos pulos, fomos até a venda do Fifico, de onde avistamos enormes barracas. Nunca tinhamos visto barracas tão grandes. Os olhos arregalaram-se e ficamos observando. As lonas laterais estavam levantadas, conseguimos ver o movimento de mulheres e meninas, todas vestidas de uma maneira estranhamente linda. Tranças negras, saias floridas, muitos enfeites. As crianças brincavam correndo ao redor das barracas. Não se podia entender o que diziam, mas falavam alto, alguns cantavam. Ficamos ali por um bom tempo, sentido o medo e o prazer de desvendar um outro mundo, totalmente desconhecido para nós. Lembro que o Rogério comentou baixinho:
- Será que estas crianças foram roubadas?
- Não, acho que não. As crianças estão alegres, estão brincando e parecem felizes.

O tempo passou sem que percebessemos, até que começou a escurecer, corremos de volta para casa. Cheguei toda esbaforido, minha avó Maria indagou, por onde havia andado? Sem saber explicar por que, sentiu uma vontade de contar o que realmente gostaria que tivesse acontecido:
- Vó, a senhora nem sabe! Eu e o Rogério estávamos brincando e uma ciganinha veio falar conosco. Ela nos convidou para ir até a barraca dela. Ela foi muito boazinha, até serviu um bolo de fubá. A barraca é muito linda, tem muitos tapetes coloridos, a gente senta no chão. A ciganinha, ela chama Elaine,  nos mostrou os vestidos dela, são de um pano bem fininho e lisinho. Uns tem brilho, outros são transparentes. Muitas pulseiras, colares e brincos, todos de ouro. Ela guarda tudo em um baú enorme com dobradiças de ferro. A mãe da ciganinha convidou agente para ir lá amanhã.
Foi aí que tudo aconteçeu. Eu era gordinho, cabelo preto liso, bochechas coradas, dedo gordo, as pernas tinham dobras. Fui criado até os cinco anos no sitio Nossa Senhora Aparecida á um nove quilômetros de congonhal, comia legumes frescos, carne de porco, arroz e feijão feito em banha de porco. Se ficava doente, com verme, era atendido no postinho pela Rita ou pelo Dr. Sebastião, tinha saúde.

Já os ciganos não tinham endereço fixo, documentos, conta em banco, carteira assinada nem história. A vida deles passava despercebida, como se não existisse. A única certeza é que nunca faltava a eles preconceito e ignorância, medo e fascínio, injustiças e alegrias ao longo de sua interminável jornada. A história dos ciganos é toda baseada em suposições pois lhe faltam documentos. Os ciganos são um povo sem escrita. Eles nunca deixaram nenhum registro que pudesse explicar suas origens e seus costumes. Suas tradições são transmitidas oralmente. A dificuldade em se fixar, o conceito quase inexistente de propriedade e a forma com que lidam com a morte – eliminando todos os pertences do falecido – dificultam ainda mais o conhecimento exato de sua história. Este grupo que ali estava, onde conheci Elaine, veio de algum lugar entre a Bolívia e a Argentina, mas ela foi registrada no Brasil. Sua familia nômade, atravessou diversos países da América do Sul, e naquela época ainda não havia ido à escola, embora já tivesse cerca de dez anos de idade.

Ela tinha um irmão, tinha também cerca de seis anos, era baixinho, franzino, cabeçudo, cabelo escorrido, barrigudo, com certeza não sobreviveria á um inverno mais rigoroso.

E não é que os ciganos me trocaram, levaram o Sinésio gordinho e corado e deixaram no lugar o Cigano magrinho e barrigudinho. Meu pai até que foi atrás dos ciganos mais nada encontrou. Ficou comigo mesmo. Portanto eu não sou eu nem sou o outro. Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio. Pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro.

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